Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus,
nele. (1 João 4:16)
A grande novidade da revelação
cristã esta justamente na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo que é a imagem
visível de um Deus de amor ou, melhor dizendo, de um amor que é Deus em si
mesmo. É nesse sentido que a Virgem Maria pode ser chamada de mãe de Deus
(Teothokos), pois foi a Tenda onde o santo Espirito fez Sua morada trazendo ao
mundo o Seu Cristo, o Verbo (ou Palavra) de Deus Pai.
O perdão, o amor e a misericórdia
de um Deus que veio conciliar o mundo com Ele é o que constitui a essência do
Evangelho do Cristo, a Boa Nova. Tudo mais parece periférico diante dessa
grande luz libertadora das consciências. Por isso mesmo pode João afirmar:
“Amados, amemo-nos uns aos
outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus
e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor”. (1
João 4:7-8)
Esse é o ponto central. Deus é
amor. Tudo se ilumina diante dessa revelação e o Antigo Testamento é então
relido à luz desse entendimento. Foi assim que Jesus Cristo nos ensinou:
“Mestre, qual é o mais importante
de todos os mandamentos da Lei? Jesus respondeu: - "Ame o Senhor, seu
Deus, com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente." Este é o
maior mandamento e o mais importante. E o segundo mais importante é parecido
com o primeiro: "Ame os outros como você ama a você mesmo." Toda a
Lei de Moisés e os ensinamentos dos Profetas se baseiam nesses dois mandamentos”.(Mateus
22:36-40)
Toda a Escritura Sagrada está
resumida no amor: manifestado por Deus e para Deus e autenticado pelo amor ao
próximo que é visível para nós.
A parábola do juízo final mostra
o ‘critério de Deus’. Diferente dos julgamentos humanos, o Senhor da Vida
coloca o amor-caridade como aquilo que diferencia os seres humanos. Assim
sendo, não e a cor da pele, etnia, nacionalidade, orientação sexual, religião,
partido político etc. que nos faz essencialmente distintos, mas as nossas
escolhas existenciais. São elas orientadas pela caridade e compaixão ou pelo
egoísmo e desamor?
“Todos os povos da terra se
reunirão diante dele, e ele separará as pessoas umas das outras, assim como o
pastor separa as ovelhas das cabras. Ele porá os bons à sua direita e os
outros, à esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita:
"Venham, vocês que são abençoados pelo meu Pai! Venham e recebam o Reino
que o meu Pai preparou para vocês desde a criação do mundo. Pois eu estava com
fome, e vocês me deram comida; estava com sede, e me deram água. Era
estrangeiro, e me receberam na sua casa.
Estava sem roupa, e me vestiram; estava doente, e cuidaram de mim.
Estava na cadeia, e foram me visitar."
Então os bons perguntarão:
"Senhor, quando foi que o vimos com fome e lhe demos comida ou com sede e
lhe demos água? Quando foi que vimos o senhor como estrangeiro e o recebemos na
nossa casa ou sem roupa e o vestimos? Quando foi que vimos o senhor doente ou na
cadeia e fomos visitá-lo?” - Aí o Rei
responderá: "Eu afirmo a vocês que isto é verdade: quando vocês fizeram isso
ao mais humilde dos meus irmãos, foi a mim que fizeram." - Depois ele dirá aos que estiverem à sua
esquerda: "Afastem-se de mim, vocês que estão debaixo da maldição de Deus!
Vão para o fogo eterno, preparado para o Diabo e os seus anjos! Pois eu estava
com fome, e vocês não me deram comida; estava com sede, e não me deram água.
Era estrangeiro, e não me receberam na sua casa; estava sem roupa, e não me
vestiram. Estava doente e na cadeia, e vocês não cuidaram de mim." - Então
eles perguntarão: "Senhor, quando foi que vimos o senhor com fome, ou com
sede, ou como estrangeiro, ou sem roupa, ou doente, ou na cadeia e não o
ajudamos?" - O Rei responderá:
"Eu afirmo a vocês que isto é verdade:
todas as vezes que vocês deixaram de ajudar uma destas pessoas mais humildes,
foi a mim que deixaram de ajudar." E Jesus terminou assim: - Portanto,
estes irão para o castigo eterno, mas os bons irão para a vida eterna.(Mateus
25:32-46)
Quem são os bons, aos olhos de
Cristo? Freqüentadores de uma religião, pessoas que não cometem erros de
qualquer espécie, isolados do mundo? Não! Bons são aqueles que socorreram os
famintos, sedentos, os estrangeiros (excluídos da nação e do critério de
irmandade judaica), os nus, os doentes e os encarcerados. Esses estarão no
Reino de Luz e os outros sofrerão o “castigo eterno”. Fica claro aqui que atitudes
amorosas tocam o coração do Senhor, pois ao fazer pelos pequeninos, pobres, humildes e
oprimidos, estamos fazendo para Ele. Jesus toma para si qualquer ação amorosa e
caridosa, qualquer socorro ao próximo. Isso não uma teoria religiosa. Salvação
é isso.
No Espiritismo evangélico é
ensinado que chegaremos a estatura de Cristo ‘adquirindo a perfeição pela prática
constante do amor, que, através de todos os séculos, em todos os
tempos, na eternidade, é a fonte e o meio de todos os progressos, dá acesso a
todas as ciências e conduz a Deus’ (J.-B. Roustaing em “Os Quatro Evangelhos”).
Tal raciocínio se coaduna perfeitamente com a essência das escrituras e com o
juízo de Deus em Mateus.
Feitas essas considerações
iniciais, quero entrar agora no tema que me inspirou esse texto e começo com “O
Livro dos Espíritos”, questão 202, onde Allan Kardec questiona os Espíritos do
Senhor da seguinte maneira:
“Quando errante (no mundo
espiritual), que prefere o Espírito: encarnar no corpo de um homem, ou no de
uma mulher? Isso pouco lhe importa. O que o guia na escolha são as provas por
que haja de passar”.
Pouco importa! Viver como homem
ou mulher na atual existência é apenas uma questão de conveniência espiritual
dentro do quadro de provações e expiações que a pessoa, alma infinita, há de
passar no caminho do seu crescimento ou libertação-salvação.
Comentando essa questão 202,
Emmanuel, o conhecido mentor do médium Chico Xavier, assim se expressa no livro
“Vida e Sexo”:
“A homossexualidade, (...)
definindo-se, no conjunto de suas características, por tendência da criatura
para a comunhão afetiva com uma outra criatura do mesmo sexo, não encontra explicação
fundamental nos estudos psicológicos que tratam do assunto em bases materialistas,
mas é perfeitamente compreensível, à luz da reencarnação. Observada a ocorrência,
mais com os preconceitos da sociedade, constituída na Terra pela maioria heterossexual,
do que com as verdades simples da vida, essa mesma ocorrência vai crescendo de
intensidade e de extensão, com o próprio desenvolvimento da Humanidade, e o
mundo vê, na atualidade, em todos os países, extensas comunidades de irmãos em
experiência dessa espécie, somando milhões de homens e mulheres, solicitando
atenção e respeito, em pé de igualdade ao respeito e à atenção devidos às criaturas
heterossexuais”.
Emmanuel aponta que ao olhar para
essa questão como “verdades simples da vida” à luz da reencarnação[1]
poderemos ter uma compreensão bem melhor e sem os pânicos e preconceitos do olhar
da maioria heterossexual do planeta. Chama a todos que vive uma orientação
sexual diversa da maioria (ou da heteronormatividade) como “irmãos” e
pede atenção, respeito e igualdade, apontando o crescimento desse fenômeno no
mundo. Segue dizendo.
“A coletividade humana aprenderá,
gradativamente, a compreender que os conceitos de normalidade e de anormalidade
deixam a desejar quando se trate simplesmente de sinais morfológicos, para se
erguerem como agentes mais elevados de definição da dignidade humana, de vez
que a individualidade, em si, exalta a vida comunitária pelo próprio
comportamento na sustentação do bem de todos ou a deprime pelo mal que causa
com a parte que assume no jogo da delinqüência. A vida espiritual pura e
simples se rege por afinidades eletivas essenciais; no entanto, através de
milênios e milênios, o Espírito passa por fileira imensa de reencarnações, ora
em posição de feminilidade, ora em condições de masculinidade, o que sedimenta
o fenômeno da bissexualidade, mais ou menos pronunciado, em quase todas as
criaturas”.
Aqui, o nobre mentor questiona o
conceito de normalidade imposto pela maioria social, esclarece que do ponto de
vista espiritual as ‘afinidades eletivas essenciais” são mais fortes que os
traços morfológicos, anatômicos ou corporais, posto que, ao longo das
reencarnações sucessivas, nós assumimos corpos masculinos e femininos. Tal
mecanismo traz um certo bissexualismo psíquico
inato em todos os seres humanos – tese não muito distante da analise de
Freud e Jung sobre as pulsões libidinais.
Em termos junguianos, poderíamos
afirmar que existe na sombra do ego de cada um de nós o oposto sexual, em
outras palavras, há na sombra de uma mulher um homem e existe na sombra de um
homem uma mulher, o que não se traduz necessariamente como comportamento homossexual
ou “transtorno de identidade de gênero”. No livro do analista John Sanford, “Parceiros
Invisíveis” (Paullus), podemos colher boas reflexões em torno desse assunto e
com mais profundidade.
Emmanuel diz então sobre nossas
acentuações:
“O homem e a mulher serão, desse
modo, de maneira respectiva, acentuadamente masculino ou acentuadamente
feminina, sem especificação psicológica absoluta. A face disso, a
individualidade em trânsito, da experiência feminina para a masculina ou vice versa,
ao envergar o casulo físico, demonstrará fatalmente os traços da feminilidade
em que terá estagiado por muitos séculos, em que pese ao corpo de formação
masculina que o segregue, verificando-se análogo processo com referência à
mulher nas mesmas circunstâncias. Obviamente compreensível, em vista do
exposto, que o Espírito no renascimento, entre os homens, pode tomar um corpo
feminino ou masculino, não apenas atendendo-se ao imperativo de encargos
particulares em determinado setor de ação, como também no que concerne a
obrigações regenerativa”.
Emmanuel rejeita a idéia de uma identidade
sexual rígida ou uma “especificação psicológica absoluta”, pois aquilo que
chamamos de “homem” ou “mulher” são apenas acentuações psíquicas ou
espirituais. Somente as tarefas espirituais, morais e sociais que nesse mundo temos
a cumprir nos conduzem a tomar um corpo de tipo ‘A’ ou ‘B’.
Continuando, explica ainda mais esse
nobre Espírito através de Chico Xavier:
“Em muitos outros casos,
Espíritos cultos e sensíveis, aspirando a realizar tarefas específicas na
elevação de agrupamentos humanos e, conseqüentemente, na elevação de si
próprios, rogam dos Instrutores da Vida Maior que os assistem a própria internação
no campo físico, em vestimenta carnal oposta à estrutura psicológica pela qual
transitoriamente se definem”.
Contrariando muitos que ainda pensam
nos homossexuais, travestis e transexuais como pessoas essencialmente doentias,
desequilibradas, negativas ou agentes de “espíritos obsessores”, o instrutor
espiritual, um dos mais respeitados dentro do movimento espírita kardequiano,
afirma que Espíritos nobres, cultos e sensíveis (sinais evidentes de iluminação
interior) pedem aos seus instrutores (ou ‘anjos de guarda’, como os católicos
chamam) para encarnarem-se em corpos opostos a sua “estrutura psicológica transitória”.
Em outras palavras, nos corpos que não estão alinhados com a
heteronormatividade escondem-se almas nobres e iluminadas, assim como acontece
nos corpos heterossexuais, não existindo nenhum critério absoluto que diga que
uns ou outros são superiores.
Em todos os campos de orientação
sexual – sem nenhum privilégio – iremos
encontrar almas nobres, iluminadas e caridosas, como também almas inferiores, materialmente
apegadas demais e ainda cheia de vícios morais equivocados, isso sem qualquer exclusivismo.
Além do mais, essas polaridades masculinas e femininas, dentro da filosofia
espírita, serão superadas ao longo dos séculos até chegarmos ao amor
cósmico e sem fronteiras, uma alusão, talvez, aos mitos angelicais e
sua androginia.
Concluindo, o guia espiritual de
Francisco Candido Xavier nos fala da justiça divina onde não é feita nenhuma
discriminação de orientação sexual, conforme lemos em Mateus 25:
“Caminha o mundo de hoje para
mais alto entendimento dos problemas do amor e do sexo, porquanto, à frente da
vida eterna, os erros e acertos dos irmãos de qualquer procedência, nos
domínios do sexo e do amor, são analisados pelo mesmo elevado gabarito de
Justiça e Misericórdia. Isso porque todos os assuntos nessa área da evolução e
da vida se especificam na intimidade da consciência de cada um”.
Veja que esses assuntos pertencem
a “intimidade da consciência de cada um”, mas o preconceito forja verdadeiras
inquisições pós-modernas, fuxicando a vida alheia e fazendo ilações
inconvenientes e extravagantes. O constrangimento social (incluindo a
homofobia) é fruto dessa ignorância psicológica, sociológica, antropológica e
espiritual sobre o ser humano.
Como agir então diante dessas
questões que envolvem a incompreensão de uma cultura ainda cativa de uma
opressora heteronormatividade?
No livro “Endereço de Paz”, André
Luiz nos oferece um caminho de profunda moderação:
“Desafios e
problemas? Trabalhe e espere.
Ódio sobre os seus
dias? Trabalhe, estendendo o bem.
Desarmonia e
discórdia? Trabalhe pacificando.
Incompreensão e
ignorância? Trabalhe e abençoe.
Reprovação e crítica?
Trabalhe melhorando as suas tarefas”.
Paciência estratégica, ampliar o
bem no mundo (agindo), pacificar os exaltados, abençoar os ignorantes que não
compreendem e melhorar-se enquanto as críticas chovem sob o telhado existencial.
Esta é a essência de uma autêntica postura evangélica diante
da opressão e do preconceito. Tal caminho de paz pode se traduzir no conceito
de compaixão
diante daqueles que questionam toda essa “viadagem” (e que podem achar
que o meu texto é mais um sinal de “contaminação” por ela).
“Compadece-te dos
errados.
Guarda a certeza de
que Deus te permite errar
A fim de que
reconheças a tua fraqueza e imperfeição.
Nem todos os errados
possuem consciência do que fazem.
Lembra-te dos
momentos em que te desequilibras sem querer”.
(Emmanuel no livro poema
“Compaixão”)
Um dia, a humanidade – que ainda
caminha mergulhada na barbárie capitalista das guerras, desigualdades socioeconômicas,
injustiças cruéis, preconceitos etc. – compreenderá que somente o amor poderá
constituir-se na base de um novo mundo e que, desde agora, essa terapêutica
poderá nos salvar da autodestruição. Joanna de Ângelis, através da psicografia
de Divaldo Franco, chamou a isso de amorterapia que tem seu inicio no
auto-amor (sem nenhum traço narcísico).
“Amorterapia, portanto, é o
processo mediante o qual se pode contribuir conscientemente em favor de uma
sociedade mais saudável, logo, mais justa e nobre.
Essa terapia decorre do
auto-amor, quando o ser se enriquece de estima por si mesmo, descobrindo o seu
lugar de importância sob o sol da vida e, esplen¬dente de alegria reparte com
as demais pessoas o senti mento que o assinala, ampliando-o de maneira
vigoro¬sa em benefício das demais criaturas.
Enquanto as irradiações do ódio,
da suspeita, do ciúme, da inveja e da sensualidade [fixação sexista] são
portadoras de elementos nocivos, com alto teor de energias destruti¬vas, o amor
emite ondas de paz, de segurança, sustentando o ânimo alquebrado pela confiança
que transmi¬te, de bondade pelo exteriorizar do afeto, de paz em razão do
bem-estar que proporciona, de saúde como efeito da fonte de onde se origina.
Ao descobrir-se a potência da
energia do amor, faz-se possível canalizá-la terapeuticamente a benefício
próprio como do próximo.
Desaparecem, então, a competição
doentia e perversa, o domínio arbitrário e devorador do egoísmo, surgindo diferente
conduta entre os indivíduos, que se descobrirão portadores de inestimáveis
recursos de paz e de saúde, promotores do progresso e realizadores da
felicidade na Terra”. (do livro “Amor, imbatível amor”)
Usemos então tais recursos nos
embates da vida e na luta por uma nova hegemonia na sociedade, respeitando e
compreendendo tudo e todos, convivendo com a alteridade e, nos momentos
adequados, agindo na defesa da vida, do respeito e da diversidade dentro de uma
sociedade plural e radicalmente democrática.
“Porque Deus não nos tem dado
espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação”. (2 Tomíteo 1:7)
MARCIO SALES SARAIVA, 39 anos, é sociólogo,
formado em teologia básica pela PUC-Rio e mestrando em Serviço Social na UERJ.
Foi ministro leigo (ML) na Igreja Anglicana e diretor do Grêmio Espírita
Nazareno.
[1]
Ainda que você desconsidere a tese da
reencarnação, pense no amor e na graça de Deus diante de todas as suas
criaturas e que não há ninguém sem pecado na face da Terra.